Marisa Costa

Saber sonhar é saber viver!

Textos

Reversos 
 

Nada em minha vida, até aquele momento, indicava que eu me tornaria uma assassina.
Éramos uma família como outra qualquer. Tínhamos três filhos. Meu marido e eu, bem sucedidos profissionalmente. Havia harmonia e felicidade em nossa casa.
Apesar do pouco tempo que eu tinha, nunca fui uma mãe omissa, fazia questão de estar presente na vida dos meus filhos.
Conversávamos abertamente sobre a vida, o que ela traz de bom e doloroso, mas a experiência do viver é única, é de cada um.

Então, eles cresceram.
 
 
Depois de uma frustração amorosa, meu filho do meio, então, com 16 anos parecia perdido. Lembro-me bem.
─ Ela me deixou, mãe. Três anos de pura paixão e ela não me quer mais ─ dissera ele arrasado. As costas arqueadas na parede ele desceu até o chão numa total confissão de desespero.
Tomei-o em meus braços e chorei junto com ele.
Desde então, ele mudou. De um garoto meigo e lindo feito um Deus que me carregava no colo, ficou arredio e rude. Fui chamada ao colégio.
─ Seu filho foi pego fumando maconha. ─ dissera o orientador.
Odiei-o.  Repudiei violentamente tal afirmação. Como ele ousava? Ele tinha as melhores notas do colegio. Meu filho não! Não e não!
Ainda que me doesse terrivelmente, aquelas palavras martelavam minha mente sem cessar. Então, passei a segui-lo. Minha filha de 13 anos e eu dávamos uma incerta de carro na tentativa de descobrir onde ele estava.
 
Três ruas abaixo de onde morávamos também morava um traficante, um senhor de seus cinquenta e poucos anos, pai de família com três filhos, que aliciava menores para venderem drogas. Era o dono do pedaço, como diziam ─ um homem poderoso e intocável.
Todo mundo sabia que os garotos, todos de boa família, se reuniam na esquina ao lado da casa dele para usarem e comercializar drogas.
Os pais o odiavam. Adorariam ver morto o monstro capaz até de envolver os proprios filhos em suas atividades criminosas. 
 
Era noite. A esquina mal iluminada ─ circundada por dois terrenos vazios e murados ─ estava cheia de moleques. Lá estavam os garotos que eu vi crescer, que brincavam com meus filhos. Uma tristeza só.
Então eu o vi e ele a mim. Vi sua reação imediata. Jogou o cigarro de maconha no chão e pisou em cima.
─ Já para casa, agora! ─ dissera eu com toda energia, apesar de me sentir destruída.
Conversei com ele, que negou veemente. Coloquei-o de castigo por dois meses sem sair de casa. O motorista o levava e o trazia em casa e minha ajudante fiel se encarregava de mantê-lo longe das ruas enquanto eu trabalhava. 
Mas eu não podia deixa-lo preso para sempre. Liberei-o do castigo.  Depois de um tempo, ele voltou para a esquina maldita. Sem jamais desistir dele, inúmeras foram as vezes em que meu marido e eu, às vezes minha filha,  o obrigamos a vir para casa.
 
Um dia, perto das dezesseis horas, recebi a noticia: "Seu filho foi preso portando um quilo de cocaína".  
O mundo em que vivíamos se já era negro, se tornou o próprio inferno.
Em sua defesa, ele dissera:
─ A droga não era minha, eu juro! Quando a policia chegou ─ Dito, o filho do traficante ─ jogou um pacote em minha mão e fugiu. Eu fiquei ali parado, desesperado, sem saber o que fazer. Eu só fumava maconha, mãe. Nunca usei cocaína ou comercializei porra de droga nenhuma.  
Acreditei nele. 
Tentamos o conhecimento, advogados, tudo. O crime era inafiançável. Pena de quatro anos e ele só tinha 18 anos  ─  uma inteligência brilhante desperdiçada em prol da maior maldição da atualidade: as drogas.  


Quando o visitava, seus maravilhosos olhos azuis me imploravam para tira-lo daquele inferno. Impotente, eu só chorava e me desesperava. Então veio a primeira surra. A segunda, quase o matou e o deixou na enfermaria por um mês.

Certa noite, tive um sonho.
Meu filho tinha uns três anos. Estava numa praia deserta e chamava por mim desesperadamente. Tentei guiar-me pelos sons até encontra-lo. Ele estava gelado, todo molhado e inerte na areia fria. Carreguei-o em meu colo, o aqueci junto ao meu corpo e ele sorriu para mim. 
Na manha seguinte, a notícia: "Seu filho está morto. Não resistiu aos ferimentos".
 
A dor me encerrou em um mundo sombrio. Era como se parte do meu corpo tivesse sido violentamente arrancado de mim.   
Ah, se fosse fácil!
Se eu pudesse seguir em frente. Se conseguisse extirpar a onda devastadora de revolta que envenenava minha alma, talvez eu tivesse trilhado um caminho diferente. 

 
Pouco antes da meia noite me escondi atrás de um chorão ─ uma arvore que ficava ao lado da casa do traficante. A esquina estava deserta. Protegida pelas sombras da noite aguardei. O corruptor de menores chegou sozinho sem os capangas que protegiam sua linha de frente.
Dei de ombros. O sentimento que me movia não era só o de fazer justiça, era, também, de amor e esperança ─ pelo menos eu assim pensava e estava disposta a morrer se preciso fosse.   
Esperei ele descer do carro, me aproximei e dei o primeiro tiro.

─ Esse é pelo meu filho, seu merda! 
Gritando e chorando descarreguei a arma sobre o infeliz.
─ E esse e esse pelos meninos que corrompeu, assassinou. A maioria preso ou morto. Toma mais balas pelos lares que destruiu! O inferno te espera, maldito!

Quando ele parou de se mexer olhei para minhas mãos manchadas de sangue. O sangue de um verme. Sempre imaginei que me sentiria melhor, mas caí no choro. Meus dentes começaram a bater e meu sangue congelou em minhas veias.    
Eu me tornara uma assassina.

Tudo o que eu tinha agora era um imenso e profundo vazio. Meu filho não ia mais voltar. Nunca mais, e isso me assombrava como mãos saindo do túmulo.
Tarde demais compreendia que eu me igualara àquele bandido quando fizera justiça com as próprias mãos, consciência que me era odiosa e devastadora.

Dessa insanidade só me restou um único e solitário consolo: havia um escroto a menos no mundo.    



História de Ficção – fatos e personagens, eu inventei. 
Marisa Costa
Enviado por Marisa Costa em 08/04/2014
Alterado em 08/04/2014
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